sábado, 1 de dezembro de 2012

Inflada, mas vazia...

Ela cultivara uma qualidade transcendental, como uma projeção espectral, mais aparência do que conteúdo. Suas opiniões e atitudes eram inconscientes, baseadas menos em fatos e percepção do que em caprichos – caprichos de ferro, mas ainda assim caprichos –, e ela as expressava numa linguagem cheia de ostentação, mas imprecisa, inflada, mas vazia. [KOONTZ, 1991] 

domingo, 11 de novembro de 2012

Estudiosos do Macabro

Hoje, acho que pela primeira vez, eu fui alvo de uma publicidade útil dentro do Facebook. Em meio a tanto lixo de "perca a barriga em uma semana", "veja as previsões para seu signo", além de toda sorte de propagandas de roupas e calçados que estão na moda, e que por isso, e impreterivelmente, precisam ser comprados imediatamente, vi o anúncio da página "Pequenos Delírios" e me interessei. Ao abrir a página percebi que é, principalmente, focada nas publicações do autor D. Pereira, desconhecido pra mim, até então, e que trabalham com a temática do oculto e do desconhecido através da ficção. Mas, além disso, a página também apresenta conteúdos de interesse para esse "tipo de público", como eu, diga-se, que gosta de histórias de terror, suspense, macabrices e mistérios. Gostei muito. Li um pedaço do livro Estudiosos do Macabro, publicação de 2012, que é disponibilizado para download na própria página e me surpreendi com a qualidade da escrita e com a originalidade. É muito bom ver gente daqui criando coisas tão bacanas, ainda mais nos dias de hoje, em que todo mundo acha que pode ser escritor fazendo histórias superficiais repletas de clichês baratos. Por isso estou usando o espaço do blog para divulgar e recomendar. Os livros são super baratos, e é possível escolher entre a versão digital e a versão impressa. Dá pra comprar aqui.  Segue um trecho.


“Ninguém, sensitivo ou não, pode negar o desconforto que
sentimos quando nos encontramos sozinhos no escuro. Ou então a
sensação de que algo está próximo, quase sussurrando um
mistério em nossos ouvidos, mesmo quando não vemos ninguém
ao nosso redor. Tampouco...”, aqui a voz de trovão retumbou,
“podemos deixar de admitir que, sim, fenômenos que não
podemos explicar, mas que obviamente ocorrem, repetem-se dia
após dia diante das nossas fuças, apesar de na maioria das vezes
os negarmos como se fossem mero acaso.”

Estudiosos do Macabro. D. Pereira, 2012.

domingo, 7 de outubro de 2012

Um coverzinho matutino...

Acordei inspirada, com muita vontade tocar, e fazia muito tempo que eu não pegava a viola. Saiu isso, uma das músicas que eu mais gosto do Evanescence, não é muito conhecida, é bem lado B, precede a discografia oficial, mas é realmente muito linda e eu gosto muito de tocá-la.




sexta-feira, 5 de outubro de 2012

In the dust...


É estranho como algumas pessoas passam por nossas vidas e acabam ficando na poeira do caminho. É realmente muito estranho pensar, recordar aqueles que foram realmente íntimos de nossas almas em tempos passados, e que hoje não nos são mais nada, senão uma vaga lembrança, uma sensação. Um estranho que passa do outro lado da rua. 

Dependendo dos ventos que apartaram os laços, muitas vezes deixam uma situação desconfortável, aquela do estranho-conhecido. Aquela na qual abaixamos os olhos ao cruzar na rua, naquele rompimento cúmplice e calado. Sem um por que, ou uma explicação clara. Muitas vezes, essa é a exata sensação, de algo perdido na poeira do caminho. A lógica nos fica devendo. A incompreensão prepondera, e colocamos o assunto no fundo de uma gaveta esquecida, em meio às teias de aranha que procuramos esquecer.

Volta e meia lembramos coisa e outra. Uma canção, um filme, um lugar. Sem melancolia ou saudade as imagens nos surgem na memória apenas como uma constatação, e mais uma vez nos fazemos a pergunta muda, não formulada, mas sentida: "como?". Às vezes chegamos a retrilhar mentalmente o caminho, tentando achar a falha, o erro, ou o exato momento da ramificação dos caminhos, mas a resposta é o nada, o eco de uma sala vazia: a realidade. Porque ao final, essas divagações emocionais não fazem qualquer diferença, não mudam ou agem sobre a realidade. Não nos inspira à nenhuma atitude nobre de resgate. Apenas nos habitam como fantasmas que vão chegando ao longo de nossas vidas. As poeiras do caminho.

Há alguns anos atrás - 8 talvez - eu ouvi essa música pela primeira vez. Ao som de um vinil na casa de um grande amigo. Tudo novo pra mim, Smiths e a degustação do Vinil. Foi um momento que nunca vou esquecer, ainda que esse amigo já não faça mais parte da minha vida, por razões que eu sinceramente incompreendo. Mais um grão perdido na poeira do caminho.

Essa semana, voltando de ônibus pra casa, o randômico do meu mp3 tocou Cemetery Gates e me transportou pra'quele momento, com muito melancolia, devo confessar...











segunda-feira, 24 de setembro de 2012

...


Nosso maior erro no mundo inteiro é nossa insistência em encarar cada novo desdobramento como uma culminação ou um clímax. O famoso “afinal” ou “ao último nível”. Um fatalismo constitucional ajusta-se de forma contínua ao presente em eterna mutação. Um alarmismo difuso acolhe cada avanço. Há dois mil anos, estamos “perdendo o controle”.
Naturalmente, isso decorre da nossa suscetibilidade para encarar o “agora” como o Tempo Final, uma obsessão apocalíptica que persiste desde que Cristo subiu aos Céus. Precisamos parar com isso! Precisamos perceber que estamos na aurora de uma era sublime! Os inimigos não mais serão derrotados. Serão devorados e transformados.
É este, porém, o ponto que quero comprovar mesmo: o modernismo e o materialismo – elementos que a Igreja temeu por tanto tempo – estão atravessando sua infância filosófica e prática! Sua natureza sacramental mal acaba de ser revelado!
Deixem para lá os erros infantis! A revolução eletrônica transmutou o mundo industrial muito além do que poderia prever qualquer pensamento do século XX. Ainda estamos sentindo as dores do parto. Mergulhem nisso! Trabalhem com isso! Ajam de acordo!

('Lestat', 2002)

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

.maratona intelectual.


Tentei fazer história. Mas todos pareciam correr uma maratona intelectual em busca de um tesouro, capaz de torná-los famosos e amados. E abandonei o curso.

(Stephen King. A hora do vampiro, 1975)

sábado, 4 de agosto de 2012

Cats, cats, cats!




Então. Sempre fui uma criança meio adoentada. Sofri desde cedo com renite e sinusite, sem falar nos ataques de asma que me metiam no hospital vez que outra. Por esse motivo sempre tive que ficar afastada de animais domésticos, principalmente dos gatos, pois o pêlo deles parecia ser uma verdadeira arma química para o meu sistema respiratório. Entrava numa casa com gato e pronto, já começava a ficar ruim. Na verdade, sofri muito tempo com a alergia. Há pouco mais de um ano é que achei um remedinho de vovó - no caso, de sogra -, que me fez melhorar milagrosamente, o óleo de rícino. Aliás, indico muito para quem tem esses problemas respiratórios. É só tomar 7 cotinhas todos os dias junto do café. Pode ser em água, ou em suco, ou numa colher mesmo, o óleo puro.
Mas, dicas de saúde à parte, sempre achei os gatos animais lindos e interessantes, mas nunca pude criar um gatinho. Quando comecei a ficar bem das minhas alergias, comecei a amadurecer a ideia de adotar um gato. No momento pensei "ah, azar, se começar me atacar eu toco antialérgico - nem que isso signifique quantidades absurdas de antialérgico".
Daí que eu convenci todo mundo, meu marido e minha vó, que por sinal não é lá muito fã de animais. Fomos eu e o Roger a cata de bichano para adotar. O Roger sabia de um lugar onde tinha - em plena sexta-feira às 18:30, porque a ânsia era grande -, e fomos lá dar uma olhada.
Acabou que chegamos lá e tinha vários filhotinhos sem lar engaiolados, e nós ficamos com um nó no peito de ter que escolher apenas um. A louca dos gatos que mora dentro de mim aqui pensou: agora eu entendo porque algumas pessoas têm tantos gatos.
Adotamos 2 bichinhos, um guri e uma guria. A guria não se adaptou conosco. Passamos momentos muitos sofridos com ela. Ela recém tinha chegado na Pet, e tinham encontrado ela no mato. Ela estava completamente arisca. Se escondia pelos cantos e ficava mais de dia sem sair pra comer. A gente começou a ficar doente de preocupação. E como passamos pouco tempo em casa, não tivemos o tempo necessário para dar atenção a ela. Talvez se tivéssemos esperado mais, ela teria sossegado, mas a gente não 'guentou' o tranco, até porque achávamos que estávamos traumatizando mais ainda a gatinha. Moral da história: levamos ela de volta para a Pet, para que outra pessoa adotasse, e outra pessoa adotou, como a moça nos contou depois. a gatinha chegou a ficar 4 dias sem comer nesse novo lar, e demorou 2 semanas para sossegar. Mas eram pessoas que dispunham de mais tempo.
Ficamos triste em devolvê-la. Mas na nossa inexperiência, a gente achou que estava até fazendo mal pra gatinha, que ela ia acabar ficando doente sem comer, dormindo pelos cantos, embaixo de estante, atrás de geladeira.
Meus sogros tentaram ajudar, ficaram um tempo com ela pra tentar amansar, meu cunhado também, até conseguiu tratar um pouco dela. Enfim... não deu.
Na época, ouvi comentários do tipo "ah, fica com o bichinho e devolve porque não quer cuidar". Gente que não sabia da merda que estava falando, mas eu perdoo essas mesquinhezas, até porque meu espírito é nobre e minha modéstia é pouca.

Acabamos ficando apenas com o pequeno Dexter. Um mês depois o levamos para vacinar, e lá estava ela, bonita e sensual, uma gata! Já estava grande, o que dificultava a adoção, pois o pessoal quer filhotinho quase sempre. Um dengo só, e os molengas aqui não aguentaram, levaram junto. E aí deu tudo mais que certo. Os dois se adaptaram super bem, hoje não se desgrudam.

Passamos por um momento tenso semana retrasada, na castração da Valkíria, foi uma semana muito preocupante. Tínhamos medo que desse alguma complicação, porque a apesar de enfaixada, ela não parava quieta, gatos né. No meio da semana a faixa desceu e começou a aparecer um pontinho, e ficamos desesperados - de novo a inexperiência - fizemos um curativo por cima, e nos saímos muito bem, em fim de contas. Sexta passada, fomos tirar os pontos e estava tudo ótimo, super bem cicatrizado. E ela já está serelepe e faceira, 'aprontando altas confusões' lá em casa.

Os dois, são verdadeiras bênçãos em nossas vidas. Até mesmo minha vó está apaixonada por eles, que vão, de vez em quando, lá pra debaixo das cobertas dela.

Quis compartilhar esse relato, porque foi um verdadeiro marco na minha vida. Só quem tem esse sentimento por esses seres tão carinhosos e sinceros, é que entende o porque dessa emoção ser tão forte. São genuínos membros da família.

E não me ataquei da alergia nenhuma vez ainda! E as duas bolinhas de pêlo dormem conosco. Aliás, até andei lendo umas reportagens médicas, que já dizem o contrário. Que até é bom o contato com os bichanos, nem que no início seja mais complicado, e principalmente no caso de crianças, pois ajuda o organismo a criar anticorpos.

As figurinhas:




quarta-feira, 25 de julho de 2012

Supermoscas e superguerreiros fanáticos.

Um dos maiores benfeitores de todas as formas de vida foi um homem que não conseguia se concentrar em qualquer trabalho que estivesse fazendo.
Foi brilhante?
Certamente.
Foi um dos maiores engenheiros genéticos de sua geração ou de qualquer outra, inclusive várias que ele mesmo projetou?
Sem dúvida.
Então, quando o seu mundo se viu ameaçado por invasores terríveis de uma estrela distante, que ainda estavam muito longe, mas viajavam bem rápido, foi conduzido a um lugar onde pudesse ficar completamente isolado, protegido pelos mestres de sua raça, com instruções para criar uma linhagem de superguerreiros fanáticos, prontos para resistir e para derrotar os temidos invasores. Ele tinha que criá-los o mais rápido possível e disseram-lhe: "Concentre-se!"
Então ele se sentou próximo a uma janela e contemplou um jardim em pleno verão e projetou, projetou e projetou, mas, inevitavelmente, distraiu-se um pouco com outras coisas e, quando os invasores já estavam praticamente em órbita em torno deles, inventou uma nova raça de supermoscas que podiam descobrir, por conta própria, como voar pela metade aberta de uma janela entreaberta e também um interruptor para desligar crianças. As comemorações dessas incríveis descobertas pareciam fadadas a durar muito pouco, porque o desastre era iminente — as naves espaciais já estavam pousando. Mas, para a surpresa de todos, os temíveis invasores, que, como a maioria das raças beligerantes, só estavam comprando briga com os outros porque não sabiam lidar com seus problemas domésticos, ficaram tão impressionados com as invenções extraordinárias que decidiram participar das comemorações e foram imediatamente persuadidos a assinarem uma série de acordos comerciais abrangentes e a instituírem um programa de intercâmbio cultural. E, em uma surpreendente inversão da prática tradicional na conduta desses assuntos, todos os envolvidos viveram felizes para sempre.

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[Douglas Adams. Até logo, e obrigado pelos peixes, 1984]

quarta-feira, 18 de julho de 2012

O horário de almoço é uma ilusão.


Muito além, nos confins inexplorados da região mais brega da Borda Ocidental desta Galáxia, há um pequeno sol amarelo e esquecido.
Girando em torno deste sol, a uma distância de cerca de 148 milhões de quilômetros, há um planetinha verde-azulado absolutamente insignificante, cujas formas de vida, descendentes de primatas, são tão extraordinariamente primitivas que ainda acham que relógios digitais são uma grande idéia.
Este planeta tem – ou melhor, tinha – o seguinte problema: a maioria de seus habitantes estava quase sempre infeliz. Foram sugeridas muitas soluções para esse problema, mas a maior parte delas dizia respeito basicamente à movimentação de pequenos pedaços de papel colorido com números impressos, o que é curioso, já que no geral não eram os tais pedaços de papel colorido que se sentiam infelizes.
E assim o problema continuava sem solução. Muitas pessoas eram más, e a maioria delas era muito infeliz, mesmo as que tinham relógios digitais.
Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.

[Douglas Adams. Até mais, e obrigado pelos peixes] 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Sobre a arte de voar.


O Guia do Mochileiro das Galáxias diz o seguinte a respeito de voar: 
Há toda uma arte, ele diz, ou melhor, um jeitinho para voar. O jeitinho consiste em aprender como se jogar no chão e errar. Encontre um belo dia, ele sugere, e experimente. A primeira parte é fácil. Ela requer apenas a habilidade de se jogar para a frente, com todo seu peso, e o desprendimento para não se preocupar com o fato de que vai doer. Ou melhor, vai doer se você deixar de errar o chão. 
Muitas pessoas deixam de errar o chão e, se estiverem praticando da forma correta, o mais provável é que vão deixar de errar com muita força. Claramente,  é  o  segundo  ponto,  que  diz  respeito  a  errar,  que  representa  a  maior dificuldade.
Um dos problemas é que você precisa errar o chão acidentalmente. Não adianta tentar errar o chão de forma deliberada, porque você não irá conseguir. É preciso que sua atenção seja subitamente desviada por outra coisa quando você está a meio caminho, de forma que você não pense mais a respeito de estar caindo, ou a respeito do chão, ou sobre o quanto isso tudo irá doer se você deixar de errar. É reconhecidamente difícil remover sua atenção dessas três coisas durante a fração de segundo que você tem à sua disposição. O que explica por que muitas pessoas fracassam, bem como a eventual desilusão com esse esporte divertido e espetacular.
Contudo, se você tiver a sorte de ficar completamente distraído no momento crucial,  então,  em  sua  perplexidade,  você  irá  errar  o  chão completamente e ficará flutuando a poucos centímetros dele, de uma forma que irá parecer ligeiramente tola. 
Esse é o momento para uma sublime e delicada concentração. Balance e flutue, flutue e balance. Ignore todas as considerações a respeito de seu próprio peso e simplesmente deixe-se flutuar mais alto. Não ouça nada que possam dizer nesse momento porque dificilmente seria algo de útil. Provavelmente dirão algo como: "Meu Deus, você não pode estar voando!" É de vital importância que você não acredite nisso: do contrário, subitamente estará certo. 
Flutue cada vez mais alto. Tente alguns mergulhos, bem devagar no início, depois deixe-se levar para cima das árvores, sempre respirando pausadamente. 
NÃO ACENE PARA NINGUÉM. 
Quando você já  tiver  repetido  isso  algumas  vezes,  perceberá  que  o  momento  da distração logo se torna cada vez mais fácil de atingir. Você pode, então, aprender diversas  coisas  sobre  como  controlar  seu  voo,  sua velocidade, como manobrar, etc. O truque está sempre em não pensar muito a fundo naquilo que você quer fazer. Apenas deixe que aconteça, como se fosse algo perfeitamente natural.


[Douglas Adams. A Vida, o Universo e Tudo Mais]

Uma análise de Deus.


- O Jardim do Éden. A árvore. A maçã. Essa parte, lembra? O tal de Deus põe uma macieira no meio de um jardim e diz “vocês dois podem fazer o que vocês quiserem aqui, mas não comam essa maça”. Obviamente eles comem a maçã, então Deus pula de trás de uma moita gritando: “Peguei vocês, peguei vocês!” Não faria a menor diferença se eles não tivessem comido a maçã.
- Por que não?
- Olha, quando você está lidando com alguém que tem esse tipo de mentalidade – mais ou menos a mesma das pessoas que deixam um chapéu na calçada com um tijolo embaixo para os outros chutarem -, pode ter certeza de que ele não vai desistir. Ela vai acabar te pegando.

(Douglas Adams. O restaurante no Fim do Universo)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Essa história me parece familiar...


     "Há muitos anos este era um planeta próspero e feliz; pessoas, cidades, lojas, um mundo normal. Exceto pelo fato de que nas ruas altas dessas cidades havia mais sapatarias do que se creria necessário. E lentamente, insidiosamente, o número dessas sapatarias ia aumentando. É um fenômeno econômico bastante conhecido, mas trágico de se ver em operação, pois quanto mais sapatarias havia, mais sapatos tinham que ser feitos, e piores e mais imprestáveis iam ficando esses sapatos. E quanto piores ficavam, mais as pessoas tinham que comprar para se manterem calçadas, e mais as sapatarias proliferavam, até que toda a economia do lugar passou pelo que creio que foi chamado de Advento da Era do Sapato, e não foi mais possível economicamente construir qualquer outra coisa que não fosse sapataria. Resultado: colapso, ruína e fome. A maioria da população pereceu. Aqueles poucos que tinham o tipo certo de instabilidade genética transformaram-se por mutações em pássaros — você viu um deles — que amaldiçoaram seus pés, amaldiçoaram o chão e juraram que ninguém mais pisaria nele. Bando infeliz." 




(O restaurante do fim do Universo. Douglas Adams, 1980.)


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quinta-feira, 31 de maio de 2012

A calúnia de Apeles


Sandro Botticelli 
A Calúnia de Apeles (Calumnia)
c. 1495
Têmpera sobre madeira
62 x 91 cm
Galleria degli Uffizi
Florença


Essa alegoria simplesmente me encantou...

"O julgamento de Apeles é como muitos outros que conhecemos.

O rei e juiz está acompanhado pela Ignorância e pela Suspeita, suas conselheiras. Estas murmuram-lhe constantemente ao ouvido palavras venenosas, razão pela qual ele tem orelhas de burro.. De olhos virados para o chão, ele nem vê o que se passa.

A Inveja vem perante ele, acusadora, e estende um braço muito comprido para o alcançar. Traz a Calúnia pela mão.

A Calúnia tem uma tocha acesa na mão como se viesse mostrar a luz. A Malícia e a Fraude são as suas companheiras e não param de a adornar com flores, os atributos da pureza, que entrançam nos cabelos da sua senhora, procurando disfarçá-la.

Apeles vem, na figura de um homem inocente, arrastado pela Calúnia que o agarra pelos cabelos, acusadora. Ele está despido e de mãos juntas, apelando a uma justiça divina, superior àquela terrível fantochada.

Atrás deles, a horrível figura do Remorso olha sorrateiramente, por cima do ombro, para a Verdade.

A Verdade aponta para cima, remetendo o inocente à justiça divina, e aparece nua, sem nada para esconder, tal como o Apeles.

Todos os outros ocultam a sua verdadeira natureza com muita roupa, alguns até evocando a pureza.

Quem já foi caluniado assim, não o esquece certamente. A mim o que me arrepia mais é a luz que a Calúnia traz e o olhar horrendo do Remorso..."


Texto integralmente extraído de: http://anoeee.blogspot.com.br/2006/02/botticelli-e-calnia-de-apeles.html

quinta-feira, 17 de maio de 2012

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"Deus é magia, e os santos também. Os anjos são magia. E os espíritos, se realmente são aparições de almas que um dia viveram na terra, também são magia. Não estou dizendo que todos esses elementos mágicos são iguais. O que estou dizendo é que o que eles têm em comum é o fato de estarem apartados da matéria, afastados da terra e da carne. É claro que interagem com a matéria. Interagem com a carne. Mas pertencem ao reino da pura espiritualidade onde poderiam existir outras leis diferentes das nossas leis terrenas do mundo físico."

David Talbot. Talamasca

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Josephine Wall

Mais uma indicação de arte, desta vez da pintora e escultora inglesa Josephine Wall, em plena atividade. Me apaixonei pela arte dela. Aqui vão alguns belos exemplos.

Site oficial da artista: http://www.josephinewall.co.uk/index.html

 Tigermoth

Breath of Gaia


MerAngel

 Minerva's Melody


The Dryad and the Dragon

The Spirit of Flight

Untold-Story


 Enchantment


 Flight of the lynx


Love is in the Air

Stairway of Dreams

Surfers dream

Tree of 4 seasons

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Yoko D'Holbachie

Conheci recentemente a incrível obra desta artista plástica japonesa, Yoko D'Holbachie, que vale muito ser compartilhada. Visite a galeria online de Yoko D'Holbachie.













quinta-feira, 5 de abril de 2012

Adendo


Não éramos, como já disse, de maneira alguma infantilmente supersticiosos, mas o estudo científico e a reflexão nos haviam ensinado que o universo conhecido de três dimensões abarca uma fração ínfima de todo o cosmos de substância e energia. Naquela casa, um grande número de indícios, proveniente de numerosas fontes autênticas, apontava para a existência tenaz de certas forças de grande poder e, no que tange ao ponto de vista humano, excepcional malignidade. Declarar que verdadeiramente acreditávamos em vampiros ou lobisomens seria uma assertiva levianamente genérica. Mais correto seria dizer que não estávamos dispostos a negar a possibilidade de certas modificações desconhecidas e ainda não classificadas de força vital e matéria atenuada. Tais modificações se dariam com certa raridade no espaço tridimensional devido à ligação mais estreita desse espaço com outras unidades espaciais, mas ocorreriam suficientemente perto da fronteira de nosso espaço para nos proporcionar manifestações ocasionais que, por falta de um adequado ponto de observação, talvez nunca possamos vir a compreender.

Em suma, julgávamos, meu tio e eu, que um conjunto incontroverso de fatos apontavam para alguma influência persistente na casa abandonada. Essa influência podia ser atribuída a um ou outro dos rudes colonos franceses de dois séculos passados e ainda atuava através de leis desconhecidas de movimento atômico e eletrônico. O registro da história da família de Roulet parecia comprovar que ela possuíra uma afinidade anormal com círculos externos de entidade – domínios sombrios pelos quais a gente normal sente apenas repulsa e terror. Não seria de imaginar, então, que as rixas daqueles anos remotos da década de 1730 houvessem acionado algumas forças cinéticas no cérebro mórbido de um ou mais deles – principalmente no do sinistro Paul Roulet – que obscuramente haviam sobrevivido aos corpos assassinados e haviam continuado a atuar em algum espaço multidimensional segundo as linhas originais de força determinadas por um ódio desvairado contra a comunidade invasora?

Tal fato não constituía decerto uma impossibilidade física ou bioquímica à luz de uma nova ciência que inclui as teorias da relatividade e da ação intra-atômica. Podia-se facilmente imaginar um núcleo alienígena de substância ou energia, informe ou não, conservado vivo por meio de subtrações imperceptíveis ou imateriais da força vital ou dos tecidos e fluidos corporais de outros seres vivos, mais palpavelmente vivos, nos quais ele penetra e com cuja trama às vezes se funde completamente. Ele poderia ser ativamente hostil ou poderia obedecer tão-somente às cegas motivações da autoconservação. Em todo caso, tal monstro seria necessariamente, em nossa ordem de coisas, uma anomalia e uma intrusão, cuja extirpação constitui dever primacial de todo homem que não seja inimigo da vida, da saúde e da sanidade do mundo.

[H. P. Lovecraft. A casa abandonada, 1924]

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Parecer nenhum sobre nada.

A dúvida. Nada tem ela que ver com um tal de deus, ou deuses. Não, não se trata disto. Quanto a ele - ou eles -, meus pareceres permanecem bem certos, ou seja, continuam sem certeza alguma, em absoluto. Porém, sempre acompanhados de um tanto de olhar enviesado, e outro tanto de desconfiança. A esperança, se existe, é esmagada todos os dias pelo quadro social ao qual somos tortuosamente obrigados a assistir.

Contudo, e por isso mesmo - não podendo ser em nada diferente por condição obrigatória de natureza -, nós, românticos eternos, românticos eternos e etéreos, necessitamos fundamentalmente da crença na existência de um outro mundo dentro desse mesmo mundo de onde falo agora. Um outro mundo nesse mesmo mundo, onde existam coisas tremendamente misteriosas e fascinantes, segredos perpetuamente inescrutáveis. Nós, românticos eternos e etéreos, mais do que necessitar, queremos esse mundo outro, esse outro mundo. Esse mundo dos vivos do qual se gabam com tanta pompa não nos satisfaz.

E ainda que nossa razão racional, dura de pedra e sensata, ainda que toda essa mobília garbosa que carregamos em nossas mentes, nomeada de conhecimento científico, mesmo que tudo isso nos atrase as ilusões coloridas, desmentindo-as acertadamente, mesmo assim  nós as invocamos diariamente, sagradamente e irrevogavelmente, todos os dias. "Graduamos a imaginação em consciência", porque somos os românticos eternos e etéreos.

"Além desta terra e além da espécie humana há um mundo invisível e um reino de espíritos; esse mundo está à nossa volta, pois está por toda parte." (Charlotte Brontë em Jane Eyre)

"Pareceu-me - que os céus nos ajudem, como sabemos pouco sobre tudo! - que uma cena daquele tipo seria capaz de deixar a sua marca no cerne oculto da natureza." (Margaret Oliphant em A porta aberta)

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terça-feira, 27 de março de 2012

Conveniente...


— Sua observação, disse o dono da casa sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhã antes de sair para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da miséria, e a máxima de que todo o homem pode, com esforço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre parecer uma grande verdade à pessoa que estiver trinchando um peru... Pois não é assim. (Machado de Assis, Helena, 1876)


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sexta-feira, 23 de março de 2012

Papo de surdo e mudo


O nascimento de uma alma é coisa demorada
Não é partido ou jazz em que se improvise
Não é casa moldada laje que suba fácil
A natureza da gente não tem disse me disse

No balcão do botequim a prosa tá parada
Não se fala da vida, não acontece nada

Se não faltasse trabalho no meio do barulho
O dia sobra e sobra muito
Papo de surdo e mudo

Ela não passa de onda paisagem fluminense
Parece dia de festa todo mundo presente
Se soubesse rimar faria um samba antigo
Onde reina a calma e todo mundo é amigo

O calor é sólido um pedaço eu sinto
Como um bafo e a cachaça
Queima bem forte vibrante e forte
Estaria maluco se não estivesse junto



terça-feira, 20 de março de 2012

CREDENCIALISMO


O crescimento do credencialismo - isto é, a exigência de credenciais (qualificações) mais altas para os mesmos empregos - e o conhecido processo da inflação de rótulos de emprego e autopromoção ocupacional, podem criar a impressão, inteiramente errônea, de crescimento de uma sociedade mais “culta” (Kumar 1978: 2011-9).

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Chaos...


I want to be naked running through the streets
I want to invite this so-called chaos that you think I dare not be
I want to be weightless flying through the air
I want to drop all these limitations but the shoes upon my feet



Em fim de contas

Em fim de contas, o problema todo é essa espécie de maucaratismo crônico do ser humano. É a vaidade mascarada de preocupação. É o egocentrismo travestido de humildade. A hipocrisia com ares de luta legítima. É o comodismo pervertido em empenho. O consumismo desesperado apregoado como personalidade.
Meus caros e caras. A personalidade, seja ela como for; a essência, seja ela como for; a alma, seja ela como for. Estão todas muito, mas muito além, muito mais no fundo, no profundo ser de cada um. Está bem lá no fundo, sendo sufocada, esmagada, oprimida, definhando e morrendo. Muito abaixo dessas tantas camadas de tralhas e trapos que nos propomos a usar, não só fisicamente, mas também aquelas do eterno baile de máscaras invisíveis no qual nos obrigamos a representar.
Representar falas que não pensamos, sentimentos que não sentimos, vontades que não temos, sonhos que não são nossos, um personagem estranho a nós mesmos.

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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Stephen King - Prefácio, 1977


Eu fiquei realmente fascinada por esse prefácio de Sombras da Noite, do Stephen King. O livro é uma reunião de contos que foi publicado pela primeira vez em 1978. Nesse prefácio, King fala sobre o medo, sobre a fascinação pelo oculto, pelo mistério e pelo macabro. Traz algumas noções explicativas realmente esclarecedoras e surpreendentes. Eu, enquanto fã dessa gênero de produção, tanto cinematográfica, quanto literária, achei de fundamental validade as considerações que o autor faz. Uma verdadeira contribuição para o entendimento - ou, pelo menos, para uma maior compreensão - dessa delicada relação de fascínio entre o ser humano e o oculto.

Segue o prefácio galera:


Vamos conversar, você e eu. Vamos conversar sobre o medo.
A casa está vazia quando escrevo isto; uma fria chuva de fevereiro cai lá fora. É noite. Às vezes, quando o vento sopra do jeito que está soprando agora, falta luz. Mas por enquanto não está faltando, então vamos conversar muito honestamente sobre o medo. Vamos conversar muito racionalmente sobre chegar às raias da loucura… e talvez cruzar a fronteira.
Meu nome é Stephen King. Sou um homem adulto, com mulher e três filhos. Eu os amo, e acredito que o sentimento seja recíproco. Meu trabalho é escrever, e é um trabalho de que gosto muito. As histórias – Carrie, a estranha, A hora do vampiro e O iluminado – fizeram sucesso suficiente para me permitir escrever em tempo integral, o que é algo agradável de se fazer. Neste momento da minha vida, parece que estou razoavelmente saudável. No ano passado, consegui diminuir meu vício de fumar, trocando a marca de cigarros sem filtro que fumava desde os 18 anos por uma outra, com baixos teores de nicotina e alcatrão, e ainda tenho esperanças de conseguir parar por completo. Minha família e eu vivemos numa casa agradável junto a um lago relativamente livre de poluição no Maine; no outono passado, acordei certa manhã e vi um cervo no gramado dos fundos, junto à mesa de piquenique. Temos uma vida boa.
Mesmo assim… vamos conversar sobre o medo. Não vamos elevar nossas vozes nem gritar; vamos conversar racionalmente, você e eu. Vamos conversar sobre o modo como o tecido resistente das coisas consegue se rasgar de maneira assustadoramente repentina.
À noite, quando vou para a cama, ainda me esforço para ter certeza de que minhas pernas estejam debaixo dos cobertores quando as luzes de apagam. Não sou mais criança, mas… não gosto de dormir com uma perna para fora. Porque se uma mão fria sair de sob a cama e agarrar meu tornozelo, sou capaz de gritar. Sim, sou capaz de gritar a ponto de acordar os mortos. Esse tipo de coisa não acontece, é claro, todos nós sabemos disso. Nas histórias que se seguem, você vai encontrar todo tipo de criaturas da noite: vampiros, amantes demoníacos, uma coisa que vive dentro de um armário, todo tipo de horrores diversos. Nenhum deles é real. Sei disso, e também sei que se eu tomar cuidado e ficar sempre com as pernas debaixo da coberta, ela jamais vai conseguir agarrar meu tornozelo.
Às vezes falo diante de grupos de pessoas interessadas pela escrita ou pela literatura, e antes que termine o tempo das perguntas e respostas, alguém sempre se levanta e indaga: Por que você escolheu escrever sobre temas tão horríveis?
Normalmente respondo com outra pergunta: Por que você acha que eu tenho escolha?
Escrever é meio que uma ocupação improvisada. Todos nós parecemos vir  equipados com filtros no chão das nossas mentes, e todos os filtros têm tamanhos e tramas diferentes. O que fica preso no meu filtro pode passar pelo seu. O que fica preso no seu talvez passe sem problemas pelo meu. Todos nós parecemos ter a obrigação inata de remexer nos resíduos que ficam presos em nossos respectivos filtros mentais, e o que encontramos ali normalmente evolui para uma espécie de atividade paralela. O contador também pode ser um fotógrafo. O astrônomo talvez colecione moedas. O professor pode copiar entalhes de lápides, usando a técnica de passar carvão por cima de um papel. Os resíduos apanhados pelo filtro mental, aqueles que se recusam a passar, com freqüência se tornam a obsessão particular de cada um. Na sociedade civilizada, temos um acordo tácito de chamar nossas obsessões de “hobbies”.
Às vezes o hobby pode-se tornar uma ocupação em tempo integral. O contador pode descobrir que é capaz de ganhar dinheiro suficiente para sustentar a família tirando fotografias; o professor pode se tornar tão competentes nas cópias de lápides a ponto de começar a fazer conferências sobre o assunto. E há algumas profissões que começam como hobbies e continuam sendo hobbies mesmo depois que o praticante consegue ganhar a vida dedicando-se a eles; mas como hobby é uma palavra aparentemente tão corriqueira e sem graça, também temos um acordo tácito de chamar nosso hobbies profissionais de “as artes”.
Pintura. Escultura. Composição. Canto. Representar. Tocar um instrumento musical. Escrever. Livros já foram escritos sobre os setes assuntos em quantidade suficiente para afundar uma frota de transatlânticos de luxo. E a única coisa que parecemos concordar a respeito deles é o seguinte: que aqueles que se dedicam honestamente a estas artes continuariam a se dedicar mesmo se não fossem pagos por seus esforços; mesmo que seus esforços fossem criticados ou até difamados; mesmo sob risco de prisão ou morte. Para mim, esta parece ser uma definição bem precisa do comportamento obsessivo. Aplica-se aos hobbies comuns tanto quanto aos sofisticados q que chamamos “as artes”; colecionadores de armas colam em seus carros adesivos com a frase “você só tira minha arma dos dedos gelados do meu cadáver”, e nos subúrbios de Boston, donas de casa que descobriram a militância política durante a confusão dos ônibus* com freqüência exibem adesivos semelhantes com as palavras “você vai ter que me levar presa antes de tirar meus filhos do bairro” no vidro traseiro de seus carros de família. De maneira similar, se amanhã colecionar moedas passasse a ser ilegal, o astrônomo muito provavelmente não entregaria os centavos feitos de aço e as moedas de cinco centavos com efígie de búfalo; ia embrulhá-las cuidadosamente em plástico, enfiá-las no tanque da descarga da privada e regozijar-se com elas depois da meia-noite.
Parece que nos afastamos do assunto do medo, mas na verdade ainda não nos afastamos tanto assim. O resíduo que fica preso na tela do meu filtro mental é a substância do medo. Minha obsessão é pelo macabro. Não escrevi nenhuma das histórias que se seguem por dinheiro, embora algumas delas tenham sido vendidas para revistas antes de aparecerem aqui; e eu nunca devolvi um cheque sem tê-lo descontado. Posso ser obsessivo, mas não louco. No entanto, repito: não as escrevi por dinheiro; escrevi porque me ocorreu escrevê-las. Tenho uma obsessão comercializável. Há homens e mulheres loucos, presos em celas acolchoadas pelo mundo afora, que não têm tanta sorte assim.
Não sou um grande artista, mas sempre me senti compelido a escrever. Então, a cada dia volto a remexer nos resíduos, examinando os refugos da observação, da memória, da especulação, tentando criar algo com aquela substância que não passou pelo filtro e não conseguiu ir embora pelo ralo do subconsciente.
Eu e Louis L´Amour, o escritor de faroestes, poderíamos estar de pé nas margens de um pequeno lago no Colorado, e ambos poderíamos ter uma idéia exatamente no mesmo instante. Poderíamos ambos sentir o impulso de nos sentar e tentar expressá-la em palavras. A história dele talvez fosse sobre o direito à água na estação da seca; minha história provavelmente seria sobre uma criatura enorme e terrível emergindo das águas calmas e sumindo com carneiros… e cavalos… e pessoas. A “obsessão” de L´Amour está centralizada na história do Oeste americano; eu tendo mais na direção das coisas que se esgueiram sob a luz das estrelas. Ele escreve faroestes; eu escrevo histórias de terror. Ambos somos um pouco malucos.
As artes podem obcecar, e a obsessão é perigosa. É como uma faca dentro da mente. Em alguns casos – Dylan Thomas me vem à mente, e Ross Lockridge, e Hart Crane, e Sylvia Plath – , a faca pode se voltar selvagemente contra a pessoa que a empunha. A arte é uma doença localizada, normalmente benigna – pessoas criativas tendem a viver por longos anos -, às vezes terrivelmente maligna. Você usa a faca com cuidado, porque sabe que ela não se importa em saber quem está cortando. E se você for inteligente, remexe nos resíduos com cuidado… porque algumas coisas ali talvez não estejam mortas.
* nos anos 60, uma política norte americana que objetivava promover a integração racial levava de ônibus crianças de seu distrito residencial para estudar em escolas de distritos diferentes, numa espécie de permuta. Nos EUA, cada distrito é autônomo e as crianças estudam obrigatoriamente na escola pública de seu distrito – ou optam por uma escola particular, que é muito raro.
Depois de a pergunta sobre “por que você escreve essas coisas” ter sido respondida, surge outra que a acompanha: por que as pessoas lêem essas coisas? O que faz com que vendam? Essa pergunta leva consigo uma suposição oculta, e é a suposição de que gostar de histórias sobre o medo, sobre o terror, não é lá muito saudável. As pessoas que escrevem para mim muitas vezes começam dizendo, “imagino que você vai achar que sou estranho, mas eu realmente gostei de A Hora do Vampiro”, ou “provavelmente sou mórbido, mas adorei cada página de O Iluminado”…
Acho que a explicação para isso pode estar num trecho de uma crítica de cinema da revista Newsweek. A crítica de um filme de terror, não muito bom, e dizia algo mais ou menos assim: “…um filme maravilhoso para pessoas que gostam de diminuir a velocidade para ver acidentes de carro”. É uma frase incisiva, mas quando você pára pra pensar nela, vê que se aplica a todos os filmes e histórias de terror. A Noite dos Mortos Vivos, com suas cenas hediondas de canibalismo humano e matricídio, certamente era um filme destinado às pessoas que gostam de diminuir a velocidade para ver acidentes de carro; e quanto àquela garotinha vomitando sopa de ervilha em cima do padre, em O Exorcista? Drácula, de Bram Stoker, freqüentemente uma base de comparação para histórias modernas de terror (como deveria ser; é a primeira com um toque abertamente psicofreudiano), apresenta um maníaco chamado Renfield que devora moscas, aranhas e, por fim, um passarinho.  Ele regurgita o passarinho, que havia comido inteiro, com penas e tudo. O romance também fala de empalação – a penetração ritual, se poderia dizer – de uma jovem e adorável vampira, e o assassinato de um bebê e sua mãe.
A grande literatura do sobrenatural muitas vezes contém a mesma síndrome do “vamos diminuir e dar uma olhada no acidente”: Beowulf matando a mãe de Grendel; o narrador de “O coração denunciador” desmembrando seu benfeitor acometido de catarata e colocando os pedaços debaixo das tábuas do piso; a feroz batalha do hobbit Sam contra Laracna, a aranha, no livro final da trilogia do anel, de Tolkien.
Alguns vão se opor com firmeza a esta linha de pensamento, dizendo que Henry James não nos mostra um acidente de carro em “A volta do parafuso”; dirão que as histórias de Nathaniel Hawthorne sobre o macabro, tais como “O jovem Goodman Brown” e “O véu negro do ministro” também são de melhor gosto do que Drácula. A idéia não faz sentido. Eles ainda estão mostrando acidentes de carro; os corpos foram removidos, mas ainda podemos ver as ferragens retorcidas e observar o sangue sobre o estofamento. Em alguns casos, a delicadeza, a ausência de melodrama, o tom grave e estudado de racionalidade que perpassa uma história como “O véu negro do ministro” é ainda mais terrível do que as monstruosidades batráquias de Lovecraft ou o auto-da-fé de “O poço e o pêndilo”, de Poe.
O fato é – e a maior parte de nós sabe disso, no fundo – que muito poucos entre nós conseguem evitar uma espiada nervosa para a sucata cercada por carros de polícia e sinais luminosos na estrada, à noite. Idosos apanham o jornal pela manhã e imediatamente abrem na coluna de óbitos, para ver quem se foi antes deles. Todos nós ficamos abalados por um momento quando ouvimos dizer que um Dan Blocker morreu, um Freddie Prinze, uma Janis Joplin. Sentimos terror misturado com um estranho júbilo quando ouvimos Paul Harvey anunciar no rádio que uma mulher foi apanhada pela hélice de um avião durante uma tempestade, num pequeno aeroporto do interior, ou que um homem foi vaporizado imediatamente num liquidificador industrial gigante quando um colega de trabalho esbarrou num dos controles. Não é preciso elaborar o óbvio; a vida está cheia de horrores pequenos e grandes, mas pelo fato de os pequenos serem aqueles que conseguimos compreender, são os que nos atingem com toda a força da mortalidade.
Nosso interesse nesses horrores de bolso é inegável, mas também o é nossa repulsa. Os dois se misturam com dificuldade, e o produto dessa mistura parece ser a culpa… uma culpa que não parece muito diferente da culpa que costuma acompanhar o despertar sexual.
Não me cabe dizer a você que não se sinta culpado, assim como não me cabe oferecer justificativas aos meus romances e aos contos que se seguem. Mas um interessante paralelo entre o sexo e o medo pode ser observado. Quando nos tornamos capazes de ter relações sexuais, nosso interesse por essas relações é despertado; o interesse, a menos que de algum modo seja pervertido, tende naturalmente na direção da cópula e da continuidade da espécie. Quando nos damos conta do nosso fim inevitável, também nos damos conta da emoção do medo. E acho que, como a cópula leva à auto preservação, todo o medo leva a uma compreensão do nosso fim derradeiro.
Há uma antiga fábula sobre sete cegos que agarraram sete diferentes partes de um elefante. Um deles achou que segurava uma cobra, outro achou que tinha nas mãos uma palmeira gigante. Outro pensou que tocava numa pilastra de pedra. Quando se reuniram, chegaram à conclusão de que se tratava de um elefante.
O medo é a emoção que nos torna cegos. De quantas coisas temos medo? Temos medo de desligar a luz quando nossas mãos estão molhadas. Temos medo de enfiar uma faca dentro da torradeira para tirar o muffin inglês que ficou preso lá dentro sem desligá-la primeiro da tomada. Temos medo do que o médico pode nos dizer quando o exame tiver terminado; quando o avião de repente dá uma sacudida em pleno vôo. Temos medo de que o petróleo acabe, de que o ar puro se acabe, de que a água potável, a vida saudável se acabe. Quando a filha prometeu chegar as onze e já é meia noite e quinze e a chuva congelada fustiga a janela como areia seca, nós nos sentamos e fingimos assistir Johnny Carson, e olhamos ocasionalmente para o telefone mudo, e sentimos a emoção que nos torna cegos, a emoção que deixa em ruínas o processo do pensamento.
A criança é uma criatura destemida apenas até a primeira vez em que sua mãe não está lá pra colocar o mamilo dentro de sua boca quando ela chora.  O bebê que começa a andar logo descobre as verdades duras e dolorosas da porta que se bate, da boca acesa do fogão elétrico, da febre que vem com a laringite ou o sarampo. As crianças aprendem rápido o medo; conseguem percebê-lo no rosto da mãe ou do pai quando um deles entra no banheiro e as vê com um frasco de remédio ou o aparelho de barbear.
O medo nos deixa cegos, e tocamos cada medo com a ávida curiosidade do interesse próprio, tentando construir um todo a partir de uma centena de partes, como os homens cegos e seu elefante.
Sentimos a forma. As crianças percebem depressa, esquecem, e reaprendem quando se tornam adultas. A forma está ali, e a maioria de nós se dá conta do que se trata mais cedo ou mais tarde: é a forma de um corpo debaixo de um lençol. Todos os nossos medos reunidos constituem um grande medo, todos os nossos medos são parte desse grande medo – um braço, uma perna, um dedo, uma orelha. Temos medo do corpo debaixo do lençol. É o nosso corpo. E o grande atrativo da ficção de terror ao longo das épocas é que ela serve de ensaio para a nossa própria morte.
Esse ramo nunca foi muito respeitado; durante muito tempo os únicos amigos que Poe e Lovecraft tinham eram os franceses, que de algum modo chegaram a um acordo tanto com o sexo quanto com a morte, um acordo para o qual os compatriotas americanos de Poe e Lovecraft não tiveram paciência. Os americanos estavam ocupados construindo rodovias, e Poe e Lovecraft morreram pobres. A fantasia de Tolkien sobre a Terra Média vagou a esmo durante vinte anos antes de obter algum sucesso fora do nicho da contracultura, e Kurt Vonnegut, cujos livros geralmente lidam com a idéia do ensaio para a morte, tem enfrentado uma onda constante de críticas, a maioria delas chegando às raias da histeria.
Talvez isso se dê porque o autor de histórias de terror sempre traz más notícias: você vai morrer, ele fala; diz pra você não dar importância a Oral Roberts** e seu “algo de bom vai acontecer com você”, porque algo de ruim também vai acontecer com você, e talvez seja câncer, ou talvez seja ataque cardíaco, ou talvez seja um acidente de carro, mas vai acontecer. E o autor toma sua mão na dele, e o leva para dentro do quarto e coloca suas mãos sobre aquela forma debaixo do lençol… e lhe diz para tocar aqui… aqui… e aqui…
É claro que os temas da morte e do medo não são território exclusivo do escritor de terror. Vários dos escritores chamados “tradicionalistas” lidaram com esses temas, e de uma variedade de formas diferentes – desde “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoievski, a “Quem tem medo de Virgínia Woolf?”, de Edward Albee e às histórias de Lew Archer, por Ross MacDonald. O medo sempre foi um tema importante. A morte foi um tema importante.  São duas constantes do ser humano. Mas apenas o escritor de terror e do sobrenatural dá ao leitor uma oportunidade para total identificação e catarse. Os que trabalham no gênero com a mínima compreensão que seja do que estão fazendo sabem que todo o território do horror e do sobrenatural é uma espécie de filtro entre o consciente e o subconsciente; a ficção de terror é como uma estação central de metrô na psique humana, entre a linha azul daquilo que conseguimos incorporar com segurança e a linha vermelha daquilo de que precisamos nos livrar, de um jeito ou de outro.
Quando você lê histórias de horror, não acredita realmente no que está lendo. Não acredita em vampiros, lobisomens, caminhões que subitamente funcionam, e se movem sozinhos. Os horrores em que todos nós acreditamos são do tipo descrito Dostoievski e Albee e MacDonald: o ódio, a alienação, envelhecer sem amor, adentrar um mundo hostil com as pernas inseguras da adolescência. Nós somos, em nosso mundo real e cotidiano, muitas vezes semelhantes às máscaras da Comédia e da Tragédia, rindo por fora, uma careta de dor por dentro. Há um interruptor central em algum lugar dentro de nós, um transformador, talvez, onde os fios que ligam as duas máscaras se conectam. E esse é o local onde a história de terror muitas vezes atinge seu alvo.
O escritor de histórias de terror não é tão diferente do comedor de pecados galês, que teoricamente assume os pecados do caro falecido comendo a comida dele. O conto que trata de monstruosidades e terror é um cesto mais ou menos cheio de fobias; quando o escritor passa, você tira do cesto um dos horrores imaginários dele e coloca ali um dos seus horrores pessoais reais – pelo menos por algum tempo.
Nos idos de 1950, houve uma onda tremenda de filmes sobre insetos gigantes – O Mundo em Perigo, O Começo do Fim, The Deadly Mantis (A louva-a-deus mortífera) e assim por diante. Quase sem exceção, com o desenrolar do filme descobríamos que aqueles mutantes horrorosos e gigantescos eram resultado de testes atômicos no novo México ou em algum atol no Pacífico (e no mais recente Horror of Party Beach (O horror na praia de festas), que poderia ter recebido o subtítulo de Beach Blanket Armaggedon (Armageddon na toalha de praia), a culpa caia no lixo atômico). Considerados em conjunto, os filmes de insetos gigantes formam um padrão inegável, uma desconfortável gestald do terror de um país inteiro diante da nova era que o Projeto Manhattan inaugurara. Mais tarde nos anos 50 houve um ciclo de filmes de terror “adolescentes”, começando com I was a teenage werewolf e culminando com épicos como Teenagers from outer space (adolescentes extraterrestres) e A Bolha Assassina, em que um Steve McQueen imberbe lutava contra uma espécie de gelatina mutante com a ajuda de seus amigos adolescentes. Numa época em que todas as revistas semanais continham pelo menos um artigo sobre o aumento da delinqüência juvenil, os filmes de terror juvenis expressavam o desconforto de todo um país diante da revolução jovem que já se fermentava; quando você via Michael London se transformar num lobisomem com um casaco de ginasial, uma conexão se estabelecia entre a fantasia na tela e suas próprias ansiedades flutuantes dirigidas ao nerd no carrão envenenado que sua filha estava namorando. Para os próprios adolescentes (eu era um deles e falo por experiência própria), os monstros produzidos pelos estúdios da American-Internacional davam a oportunidade de ver alguém ainda mais feio do que eles se sentiam; o que eram umas poucas espinhas comparadas àquela coisa trôpega que antes era um ginasial em I was a teenage Frankenstein (eu fui um Frankenstein adolescente)? O mesmo ciclo também expressava os sentimentos dos próprios adolescentes, de que estavam sendo injustamente subjulgados e diminuídos pelos mais velhos, que seus pais simplesmente “não entendiam”. Os filmes obedecem a uma formula (como grande parte da ficção de terror, escrita ou filmada), e o que esta formula expressa com maior clareza é a paranóia de toda uma geração – uma paranóia sem dúvida causada, em parte, por todos os artigos que seus pais estavam lendo. Nos filmes, uma criatura terrível e verruguenta está ameaçando Elmville. Os garotos sabem, porque o disco voador pousou perto da alameda dos namorados. No primeiro rolo de filme, a criatura verruguenta mata um velho numa picape (o velho era invariavelmente interpretado por Elisha Cook Jr). Nos três rolos seguintes, os garotos tentam convencer os mais velhos de que aquela criatura verruguenta está de fato à solta nas redondezas. “Dêem o fora daqui antes que eu prenda vocês todos por viola o toque de recolher!”, o chefe de polícia de Elmville brada logo antes que o monstro se esgueire pela Main Street, deixando um rastro de destruição por toda parte. No fim, são os garotos espertos que dão cabo da criatura verruguenta, e depois se reúnem no ponto de encontro costumeiro para tomar chocolate maltado e dançar ao som de alguma cançãozinha boba enquanto os créditos deslizam pela tela.
São três oportunidades distintas de catarse num ciclo de filmes – nada mau para um punhado de épicos de baixo orçamento que normalmente eram rodados em menos de dez dias. Isso não aconteceu porque os roteiristas e produtores e diretores desses filmes queriam que acontecesse; aconteceu porque as histórias de terror ficam mais à vontade naquele ponto de conexão entre o consciente e o subconsciente, o lugar onde tanto a imagem como a alegoria ocorrem mais naturalmente e com efeito mais devastador. Há uma linha direta de evolução entre I was a teenage werewolf e Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, e entre Teenage Monster (monstro adolescente) e o filme de Brian de Palma, Carrie, a estranha.
** Tele-evangelista norte-americano.
A grande ficção de horror é quase sempre alegórica; às vezes a alegoria é intencional, como em A revolução dos Bichos e 1984, e às vezes simplesmente acontece – J.R.R. Tolkien jurava de pés juntos que o Senhor do Escuro de Mordor não era Hitler num disfarce da fantasia, mas as teses e monografias continuam afirmando o contrário… talvez porque, como diz Bob Dylan, quando você tem muitas facas e garfos, tem de cortar alguma coisa.
As obras de Edward Albee, de Steinbeck, Camus, Faulkner – essas obras lidam com o medo e a morte, às vezes com o horror, mas normalmente esses escritores tradicionais abordam o tema de modo mais normal e realista. Seu trabalho se enquadra em um mundo racional; são histórias que “poderiam acontecer”. Estão na linha de metrô que atravessa o mundo externo. Há outros escritores – James Joyce, Faulkner novamente, poetas como T.S. Eliot, Sylvia Plath e Anne Sexton – cuja obra entra no território do inconsciente simbólico. Estão na linha de metrô que atravessa a paisagem interna. Mas o escritor de horror está quase sempre na estação que une as duas, pelo menos se ele está afiado. Quando está em sua melhor forma, muitas vezes temos a estranha sensação de não estarmos totalmente adormecidos ou acordados, o tempo se distende e sai de lado, ouvimos vozes mas não distinguimos as palavras ou o sentido, os sonhos parecem reais e a realidade parece um sonho.
Trata-se de uma estação estranha e maravilhosa. Hill House fica ali, naquele lugar onde os trens passam nos dois sentidos, com as portas que se fecham de modo perceptível; a mulher no quarto com papel de parede amarelo está ali, rastejando pelo chão com a cabeça pressionada sobre aquela leve mancha de gordura; as criaturas tumulares que ameaçavam Frodo e Sam estão ali; e o modelo de Pickman, do conto homônimo de H.P. Lovecraft; o wendigo, o monstro canibal dos índios algonquinos no Canadá; Norman Bates e sua terrível mãe. Não há despertar ou sonhar nessa estação, mas apenas a voz do escritor, baixa e racional, falando sobre como o tecido resistente das coisas às vezes pode se rasgar de maneira assustadoramente repentina. O escritor lhe diz que você quer ver o acidente de carro, e ele está certo – você quer mesmo. Há a voz de um morto ao telefone… alguma coisa atrás das paredes da velha casa que pelo som parece maior do que um rato… movimentos ao pé da escada do porão. Ele quer que você veja todas essas coisas, e mais; quer que você coloque sua mão no vulto debaixo do lençol. E você quer colocar sua mão ali. Sim.
Estas são algumas das coisas que sinto que a narrativa de terror faz, mas estou firmemente convencido de que deve fazer mais uma, e esta acima de todas as outras: deve contar uma historia que mantenha o leitor ou o ouvinte fascinado por algum tempo, perdido num mundo que nunca existiu e nunca poderia existir. Deve ser como o convidado do casamento que pega um drink a cada três vezes que o garçom passa. Durante toda minha vida como escritor, tenho defendido a idéia de que na ficção o valor da história prevalece sobre todas as outras facetas do ofício da escrita; caracterização, tema, atmosfera, nada disso vale alguma coisa se a história não tiver graça. E se a história conseguir prendê-lo, todo o resto é perdoável. Minha citação predileta a respeito disso veio da pena de Edgar Rice Burroughs, que não é o candidato de ninguém para a vaga de Maior Escritor do Mundo, mas um homem que compreendeu por completo o valor da história. Na página um de A Terra que o Tempo Esqueceu, o narrador encontra um manuscrito numa garrafa; o resto do romance é a apresentação desse manuscrito. O narrador diz: “leia uma página, e eu serei esquecido”. É uma promessa que Burroughs cumpre – e muitos escritores com mais talento do que ele não.
Em suma, meu nobre leitor, eis uma verdade que faz o mais forte escritor ranger os dentes: com exceção de três pequenos grupos de pessoas, ninguém lê o prefácio de um autor. As exceções são: um, os parentes mais próximos do escritor (normalmente sua mulher e sua mãe); dois, os representantes oficiais do escritor (e o pessoal do setor editorial e afins), cujo interesse principal é descobrir se ao longo das divagações do autor alguém que foi difamado ou caluniado; e três, aquelas pessoas que de algum modo ajudaram o escritor em sue caminho. Essas são as pessoas que querem saber se o autor agora está tão cheio de si a ponto de esquecer que não chegou até ali sozinho.
Outros leitores podem sentir, o que é perfeitamente justificável, que o prefácio do autor é uma imposição indecente, um comercial de várias páginas sobre ele mesmo, mais ofensivo até do que os anúncios de cigarro que proliferam na parte central dos livros de bolso. A maior parte dos leitores vem assistir o espetáculo, e não ficar vendo o contra-regra agradecer aos aplausos diante das luzes. Mais uma vez, isso é perfeitamente justificável.
Vou me despedir agora. O espetáculo em breve começará. Entraremos naquele quarto e tocaremos o vulto sobre o lençol. Mas antes que eu vá embora, quero tomar só mais uns dois ou três minutos do seu tempo e agradecer a algumas pessoas que pertencem aos três grupos mencionados acima – e a um quarto grupo. Agüente mais um pouco enquanto digo alguns muito-obrigados:
À minha mulher Tabitha, minha melhor e mais afiada crítica. Quando ela sente que o trabalho está bom, diz; quando sente que meti os pés pelas mãos, consegue me colocar no meu devido lugar de maneira mais gentil e amável possível. Aos meus filhos, Naomi, Joe e Owen, que têm sido bastante compreensivos com a ocupação peculiar de seu pai no quarto lá em baixo. E à minha mãe, que faleceu em 1973 e a quem este livro é dedicado. Seu encorajamento era firme e constante, ela sempre parecia dispor de 40 ou 50 centavos para o envelope auto-endereçado e selado de resposta e ninguém – incluindo eu mesmo – ficou mais feliz do que ela quando consegui “chegar lá”.
No segundo grupo, agradecimentos especiais vão para o meu editor, Willian G. Thompson da Doubleday & Company, que tem trabalhado pacientemente comigo, que tem suportado meus telefonemas diários com bom humor constante, e que foi gentil com um jovem escritor sem qualquer currículo alguns anos atrás, ficando ao seu lado desde então.
No terceiro grupo estão os primeiros compradores da minha obra: Sr. Robert A. W. Lowndes, que adquiriu os dois  primeiros contos que vendi em minha vida; Sr. Douglas Allen e Sr. Nye Willden da Dugent Publishing Corporation, que compraram tantos dos seguintes para as revistas Cavalier e Gent, nos velhos tempos de dureza em que os cheques chegavam bem a tempo de evitar o que a companhia elétrica eufemisticamente chama de “interrupção do serviço”.; a Elaine Geiger, Herbert Schnall e Carolyn Stromberg da New American Library; a Gerald Van der Leun da Penthouse e Harris Deinstfrey da Cosmopolitan. Muito obrigado a todos vocês.
Há um último grupo ao qual eu gostaria de agradecer, o grupo composto por cada um dos leitores que um dia abriu a carteira para comprar alguma coisa escrita por mim. De muitas maneiras, este livro é seu, porque tenho certeza de que jamais teria acontecido sem você. Então, obrigado.
Aqui, onde estou, ainda está escuro e chove. Uma noite bem agradável. Há uma coisa que eu quero mostrar a você, uma coisa em que quero que toque. Está num quarto não muito longe daqui – na verdade, fica bem na próxima página.
Vamos?

Bridgton, Maine
27 de fevereiro de 1977





Fonte: http://fasebonus.wordpress.com/

Diário de um demônio


[...] ele gostava das pessoas. Era um grande defeito num demônio.
Ah, ele dera o melhor de si para infernizar as vidas deles, porque esse era seu trabalho, mas nada que ele pudesse pensar era metade do que eles pensavam por conta própria. Pareciam ter um talento para isso. Estava embutido no projeto da criação deles de algum modo. Nasceram num mundo que era contra eles em um milhão de coisinhas, e então dedicavam a maior parte de suas energias a torná-lo pior. Ao longo dos anos, Crowley achara cada vez mais difícil encontrar algo de demoníaco a fazer que se destacasse contra o plano de fundo natural da maldade generalizada. No decorrer do último milênio, houve momentos em que sentiu vontade de enviar uma mensagem lá para Baixo dizendo: escutem, que tal a gente desistir de tudo agora, fechar Dis e o Pandemônio e todo o resto e nos mudarmos para cá? Não há nada que possamos fazer a eles que eles já não façam por conta própria, e eles fazem coisas que nós sequer pensamos, freqüentemente envolvendo eletrodos. Eles têm o que não temos. Eles têm imaginação. E eletricidade, é claro. 



[GAIMAN; PRATCHETT. Belas Mandições, 1990]  

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Malditas bruxas!

- Não acho que sair queimando gente seja permitido - disse Adam. - Senão as pessoas estariam fazendo isso a todo instante.
- Tudo bem se você for religioso - disse Brian com segurança. - E isso impede que as bruxas vão para o inferno, então acho que elas até ficariam bastante agradecidas se entendessem isso direito.

- Gangue do pirulito -

[GAIMAN; PRATCHETT. Belas Mandições, 1990]  

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Zeitgeist: Moving Forward (2011)

A terceira parte de um dos melhores documentários dos últimos tempos, que trata da profunda crise em que a civilização humana se encontra. Recomendo também as duas primeiras partes. Contudo, esse vai direto ao ponto. Mais que recomendado! Segue o torrent pra quem quiser baixar.


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Deus: jogador de pôker em nível olímpico...


Deus age de formas extremamente misteriosas, para não dizer tortuosas. Deus não joga dados com o universo; Ele joga um jogo inefável de sua própria criação, que poderia ser comparado, na perspectiva de qualquer um dos outros jogadores [todos os dois], a estar envolvido numa obscura e complexa versão de pôquer numa sala completamente escura, com cartas em branco, por apostas infinitas, com um crupiê que não lhe diz quais são as regras, e que sorri o tempo todo. [GAIMAN; PRATCHETT. Belas Mandições, 1990]