sexta-feira, 4 de março de 2011

O sobrevivente

O sobrevivente
Carlos Drummond de Andrade


Impossível compor um poema a essa altura da
evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que
seja - de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as
necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram
e matam-se como percevejos.

Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
(Desconfio que escrevi um poema.)
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