Na vida real, a morte é bem mais prática e bem menos romântica. Talvez por isso mesmo demore certo tempo para que nos demos conta da perda, do que ela de fato significa. É preciso chamar funerária, agendar horários, conseguir documentos que atestem a morte. O encapuzado de negro, com a foice na mão, não dá as caras, mas paira no ar, como uma cruel presença ostensiva, opressiva. Comprime nosso coração e o espreme até sair o suco salgado dos nossos olhos. Estupra nossa alma, nossa consciência, nos esgota com infinitas lembranças, infinitos remorsos irrevogáveis.
Mas... a morte, se não deixa boca para sorrir, também não deixa olhos para chorar. Talvez por isso meu primeiro sentimento tenha sido de franco alívio pelo fim do sofrimento que afligia cruelmente minha vó nos últimos anos.
Demorou certo tempo para que eu entendesse. Só mesmo quando me dirigia ao velório é que as lágrimas começaram a rolar, e a impotência em segurá-las causava uma raiva muda, uma angústia amarga.
Chegando próximo ao caixão me escondi atrás de meus pais, numa atitude quase inconsciente de protelação. Mas quando vi a imagem tão conhecida de minha vó, agora naquele corpo sem nenhuma vida ou expressão, senti o chão me faltar, e um vazio muito grande abriu espaço no meu peito. Um vazio sobre a vida, sobre qualquer sentido. Uma falta de qualquer coisa. Um sentimento de confusão absoluta.
Toquei a mão gelada de morte, mas não senti minha vó. Minha vó já estava em qualquer outro lugar, ou em lugar nenhum, mas não mais ali...
A dúvida sobre tudo isso aqui gritava mais do que nunca dentro da minha cabeça...
Contudo, um consolo ecoava... a morte, se não deixa boca para sorrir, também não deixa olhos para chorar, e minha vó já tinha sofrido demais...
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Agradeço vó, por tudo.
Pelas sopas, pelo feijão com farinha de mandioca e pelos ovos cozidos.
Por me enganar na contagem das colheradas - nunca me dei conta de que o dez sempre coincidia com a última colherada do prato.
Obrigada, vó, pelas noites rezando terços, por me deixar controlar as contas do rosário e por me ensinar todas as orações, minhas primeiras leituras. Te agradeço por me ensinar a beleza poética da religião que sem nenhuma dúvida ajudou na formação do meu caráter.
Te agradeço, vó, por confiar em mim e deixar eu cortar teu cabelo quando ainda era criança, me senti tão importante.
Obrigada vó, por me comprar os vestidos de prenda, os chapéus de palha com rendinhas coloridas para andar no sol.
Obrigada por me ensinar que sentar na pedra fria faz mal pra bexiga e que a cor do xixi diz muito sobre a saúde da gente.
Obrigada por me trazer um flan, um todinho ou uma “teta-de-nega” em todos os finais de tarde de um pedaço grande da minha infância.
Por sentar no sol comigo, comendo laranja ou bergamota, e contar tantas histórias sobre a vida.
Te agradeço por narrar, ainda à luz da vela, naquela casinha de madeira, histórias de mistério que tanto me fascinaram.
E sei cá comigo, no fundo, que deveria ter dito isso tudo pra ti em vida. Mas não deu, não fiz. Talvez o tenha feito em gestos, mas nunca tão explícitos quanto podem ser as palavras claras. Deixo aqui esse sincero agradecimento, talvez muito mais para lembrar a mim mesma das tantas coisas boas que vivi e que aprendi contigo, do que para fazer um arremedo de agradecimento, um remendo na vida. Ainda assim, essas poucas palavras deixam ver apenas uma fina fresta de luz da importância que tiveste na minha vida.
Esteja em paz minha vó.